Colcha de retalhos, o livro, o filme e a nossa história

“É provável que mesmo com todas as suas precauções sua colcha ainda mostre sinais de idade. Não se assuste. Isso faz parte do ciclo da vida.”

Whitney Otto

Vim aqui falar um pouquinho sobre o livro How to Make an American Quilt, da Whitney Otto, mas antes de falar do livro em si, eu preciso falar de como cheguei nele. E, bem, são duas histórias entrelaçadas, então, vamos começar com a mais recente.

Em março de 2019, sim, exato um mês antes de todo esse pandemônio e com uma Teresa de apenas quatro meses, eu fui fazer um curso da professora Carla Cristina Garcia – que é professora da PUC-SP, Doutora em Ciências Sociais com estudos voltados para gênero e feminismo – com quem estudo feminismo há anos e ainda sonho em fazer um doutorado. (Sério, deem um google nessa mulher, ela é incrível!)

O tema do curso era Manualidade: a tecelagem como saber feminino. E, bem, nem tenho como dizer como o curso foi inspirador, mesmo interrompido pela pandemia, para ser retomado meses depois.

Foi nesse curso ela mencionou o livro How to Make an American Quilt, que, junto com as inúmeras referências do curso, coloquei na minha lista infinita de livros para ler.

Corta para final de 2021: eu de férias, mas sem viajar, fui escolher um livro pra ler a caí nele.

Eu tenho essa mania de, toda vez que eu assisto um filme, leio um livro, vou stalkear a obra toda. Quem é esse diretor? Esse autor? Que mais essa pessoa já fez? (Vocês fazem isso também?)

E, nessas, eu descobri que o livro foi transformado num filme em 1995, estrelado pela Winona Ryder. O filme, em português, chama Colcha de Retalhos e, olha a coincidência, eu não só já tinha assistido o filme lá em meados de 98, quando tinha uns 13 anos, como foi também o filme que me fez grande fã da Winona durante toda a minha adolescência (mais alguém aí?). Nem lembro mais o porquê, o filme não é grandes coisas – apesar da participação da Winona e de, ninguém menos, que Maya Angelou -, mas me marcou e por um bom tempo esteve na minha lista de filmes queridos. Mas cá estou eu, 20 anos depois, amando o livro que tanto amarra minha vida, meu trabalho e meus estudos.

Então, agora, sim, finalmente, vamos ao livro…

O livro conta a história da Finn Dodd (personagem da Winona no filme), uma jovem que está terminando sua tese e em dúvida se deve ou não se casar. Em meio às dúvidas sobre ambos os temas, ela vai passar uma temporada na casa da avó, numa cidadezinha do interior da Califórnia.

A avó, junto com a irmã e algumas amigas, tem uma espécie de clube da colcha de retalhos e enquanto elas costuram, vão contando suas histórias. Literal e metaforicamente.

A história dos quilts (ou colcha de retalhos, em português) e da tapeçaria é a história de uma importante forma de expressão feminina, ainda que não seja reconhecida dessa maneira, especialmente na sociedade de hoje. (Nem sempre foi assim, mas isso é história pra outro post.)

O mais bonito do livro é que cada capítulo é intercalado com instruções sobre como fazer uma colcha de retalhos e, veja bem, são instruções de verdade, dá para seguir se você estiver pensando em fazer a sua, mas as instruções também servem de metáfora para a vida de cada uma das mulheres que fazem parte do livro, mas também para as nossas – como essa frase aí que abre esse texto.

Tecer e contar histórias são duas atividades intimamente interligadas.

Basta pensar no nosso vocabulário: a própria palavra texto (variante de tecido), ao tratarmos da narrativa, falamos em trama, em enredo, em fio da meada… Dizemos que “quem conta um conto aumenta um ponto”. E temos as palavras novelo e novela. (Aliás, sobre isso, vale a leitura do belíssimo texto O Tao da Teia, da Ana Maria Machado).

Vale pensar também na mitologia grega que com frequência aproxima essas duas atividades. A lenda mais expressiva, talvez, seja a de Aracne, que conta a história fascinante de uma tecelã que confia tanto em sua habilidade que se sente capaz de desafiar uma divindade para um concurso de tecelagem no qual, não apenas tece melhor do que Atena, mas tem a suprema ousadia de usar sua tapeçaria para ilustrar os crimes cometidos, pelos deuses, contra mulheres. Em consequência desse ato, é castigada e transformada em aranha.

Ou o meu preferido, o mito da Moiras que eram as três irmãs que determinavam o destino, dos deuses e dos homens. Elas eram responsáveis por fabricar, tecer e cortar aquilo que seria o fio da vida de cada um.

Essa é a beleza dos trabalhos têxteis, a maneira como eles não só podem servir como metáfora, mas se entrelaçam mesmo com as nossas vidas, especialmente a vida das mulheres.

Esqueça essa ideia de roupa é sinônimo de consumismo. Pode até ser, em alguns casos, mas, vá além. Pense nos bordados, nos tricôs feitos pelas suas avós e bisavós e passados adiante.

Pense nas histórias contadas através dos quilts, das tapeçarias. Pense em como a história da humanidade se entrelaça com a história dos têxteis (Já escrevi sobre isso aqui e aqui).

E pense naquela roupa de alguém que já partiu ou cresceu ou de um momento que marcou, da sua formatura, da entrevista do primeiro emprego, de quando você conheceu alguém que amou.

Aquela roupa que conta uma história, a sua história, a nossa história.

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