Somos todas vítimas da moda?

Uma reflexão sobre o livro A moda e seu papel social

Uma das minhas primeiras lições de feminismo foi que a história das mulheres foi invisibilizada. Contada da perspectiva masculina, a história hegemônica colabora com a ideia de que as mulheres são dóceis, submissas, domesticadas.

Aprendi logo nas primeiras aulas com a professora Carla Cristina Garcia que era preciso, antes de mais nada, questionar essa história.

Passivas são as mulheres que performam nas histórias masculinas. As reais, nem tanto. Existiram e existem, sim, mulheres artistas, trabalhadoras, piratas, intelectuais, guerreiras, desbravadoras.

Entendido isso, comecei a questionar a relação entre mulheres e moda.

A história da moda é uma história, muitas vezes, de mulheres que se submeteram às coisas mais absurdas: espartilhos, anquinhas, mangas debilitantes e por aí vai.

E aí comecei a questionar: aceitamos isso passivamente? Só agora estamos nos rebelando? Se hoje nossos trajes são tão mais livres seria por força do acaso?

A resposta é não.

Desde que o traje passou a demarcar gêneros (é, nem sempre a roupa serviu pra isso), houveram mulheres que não se encaixaram.

Só que essa história raramente foi contada.

A história da moda não só é, na maioria das vezes, contada a partir de uma perspectiva masculina, como também é a história de pessoas abastadas: da nobreza, da aristocracia, da burguesia.

Pouco se fala de outras classes sociais, em partes porque, antes do surgimento da fotografia, tinha-se pouco registro das pessoas mais pobres. Afinal, quem tinha seus retratos pintados era a nobreza.

Com a fotografia, isso foi, aos poucos, mudando, mas ainda assim, fotografias no âmbito da moda raramente tinha como enfoque as classes média e operárias.

Além disso, os livros de moda tratam, principalmente, da história da moda na Europa e, após Revolução Industrial, nos EUA. Afinal, é nesse contexto que o sistema da moda surge.

O que isso tudo significa é que boa parte das mulheres foi deixada de fora da história da moda.

O que a Diana Crane faz no livro A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas é justamente retomar parte dessa história perdida, num trabalho primoroso de reconstrução história com base em diversos documentos da França, Inglaterra e EUA.

No capítulo Vestuário feminino como resistência não verbal, ela vai dizer exatamente o que eu disse acima: “havia, de fato, dois estilos de roupas para mulheres na segunda metade do século XIX. Fotografias atestam a existência de um outro estilo, que coexistia com a moda dominante, o qual chamarei de ‘estilo alternativo’. Esse estilo foi largamente adotado, mas pouco discutido.” (CRANE, 2013, p. 200)

Pode até parecer que não, mas essas mocinhas estavam quebrando todas as regras com esses looks aí da foto: chapéu de palha, gravata, camisa de colarinho, casacos eram as roupas masculinas da época!

Crane começa fazendo uma minuciosa diferenciação nos modos de vestir entre as diferentes classes e isso, por si só, já muda por completo a perspectiva. Quem eram as mulheres que usavam saias extremamente volumosas, espartilhos escandalosamente apertados, roupas impossíveis de vestir e movimentar-se? Não eram as mulheres trabalhadoras das classes média e operária, disso você pode ter certeza.

Se um cientista social do século XIX se propusesse a prever como as mulheres se vestiriam no século XXI, só teria chance de chegar a uma avaliação correta se considerasse o vestuário das mulheres mais marginais da Europa e dos Estados Unidos. O vestuário feminino de hoje deriva em parte dos estilos adotados pelas mulheres das classes média e operária cujo comportamento não correspondia ao ideal feminino vitoriano.” (CRANE, 2013, p. 197)

E veja que interessante esse trecho, as mulheres marginais não só não correspondiam ao ideal feminino vitoriano, roupas aí inclusas, como foi esse modo de vestir que, apesar de muito resistência masculina e das classes altas, resistiu ao tempo.

Tudo isso pra dizer que, não, nós mulheres não somos vítimas da moda. Algumas, talvez. Definitivamente, não todas. Não compactuamos docilmente com aquilo que nos é imposto. Brigamos, nos rebelamos, desafiamos a ordem social. E, muitas vezes, vencemos. Sempre que isso acontece, a história é apagada e contada de uma maneira a fazer com que o mito da mulher domesticada persista.

Precisamos contar outras histórias, olhar sob outras perspectivas para não deixarmos que isso aconteça. Cada vez que alguém repete que somos vítimas da moda sem considerar todos os grupos de mulheres que lutaram consciente ou inconscientemente contra isso, apagamos um pouco dessa história.

O livro da Diana Crane faz um trabalho primoroso de nos relembrar.


Tenho muito mais coisas para comentar sobre esse livro da Diana Crane, mas é isso por hoje. Se você gosta desse tipo de conteúdo, me conta aqui? E se você quer saber mais sobre essa história fique ligada nos meus canais que logo mais, vem aí um grupo de estudos maravilhoso pra gente se aprofundar nesse e em outros assuntos.

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